A TRANSMISSÃO DA HERANÇA NA UNIÃO ESTÁVEL “Vou receber herança se meu companheiro(a) falecer?”

A TRANSMISSÃO DA HERANÇA NA UNIÃO ESTÁVEL “Vou receber herança se meu companheiro(a) falecer?”

A Constituição Federal de 1988 é um marco no que diz respeito às relações de família, posto que, ao contrário de todas as Constituições brasileiras anteriores, que dispunham que a família legítima se constituía apenas pelo casamento, ela veio então para privilegiar um conceito de família formada por laços afetivos.

Nessa linha, três entidades familiares passaram a ser consideradas expressamente no texto constitucional: A família constituída pelo casamento; a união estável entre homem e mulher; e a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, a chamada família monoparental.

Notória foi a intenção de estimar o princípio da dignidade humana, tornando-se ele a solução interpretativa a delinear as relações familiares sob a nova égide constitucional, que proibiu, portanto, qualquer distinção discriminatória.

Por esse motivo, a legislação e a jurisprudência também evoluíram no sentido de proteger não apenas o núcleo matrimonial, como os oriundos de diversos arranjos familiares.

Adveio o Código Civil de 2002, mas infelizmente ele não acompanhou a evolução jurídica relativa à proteção dos direitos dos membros dos mais variados modelos de família, especialmente no tratamento do regime sucessório aplicável aos companheiros e aos cônjuges.

Aliás, normas legislativas esparsas há muito consagram direitos a companheiros, sobretudo, as leis fiscais, previdenciárias, de registros públicos e de locação, disseminando o pensamento de que se entende como união estável a situação de pessoas que mantenham vida em comum sem as formalidades do casamento, embora com aparência de casados.

Contudo, diverso a isso, a disparidade da redação do Código Civil de 2002 foi motivo de acirrada crítica na doutrina, por significar um deplorável retrocesso no tratamento igualitário que antes era dispensado ao companheiro pelas leis da união estável. A participação do companheiro na herança foi restringida, em descompasso com o tratamento mais benéfico dado ao cônjuge viúvo.

Pois bem, ao dispor sobre o regime sucessório aplicável ao cônjuge e ao companheiro, o Código Civil de 2002 acabou por desarmonizar a situação de um e de outro, ao outorgar ao companheiro direitos sucessórios distintos e inferiores dos conferidos ao cônjuge, decretando uma hierarquização das entidades familiares completamente dissonante do que estabelece a Constituição Federal de 1988.

Dentre outros desequilíbrios, o companheiro que não foi contemplado expressamente com a categoria de herdeiro necessário, só terá direito à sucessão no tocante aos bens adquiridos onerosamente na constância da união estável, concorrendo, inclusive, com os colaterais (Sim, com os colaterais!). Já o cônjuge, herdeiro necessário, tem preferência sobre os colaterais, recebendo toda a herança no caso de ausência de descendentes e ascendentes.

Mas não cessam por aí as discrepâncias e desigualdades. O cônjuge, em concorrência com os descendentes, tem direito mínimo à cota igual aos descendentes, reservando-se um quarto da herança caso seja ascendente dos herdeiros com quem concorrer. O companheiro, em concorrência com os descendentes, não tem direito à reserva de um quarto da herança, podendo, inclusive, ter direito à cota menor do que os descendentes. O cônjuge, em concorrência com os ascendentes, terá direito ora a um terço, ora a metade da herança, a depender do caso. Enquanto que o companheiro, em concorrência com os ascendentes, terá direito tão somente a um terço da herança.

Com o fim de exemplificar o regramento dado pelo Código Civil de 2002 à sucessão do cônjuge e do companheiro, imagine-se que a pessoa falecida tivesse, além do cônjuge sobrevivente, um irmão. Nesse caso, o cônjuge herdaria a totalidade da herança. Na mesma situação, se tivéssemos um convivente em união estável, o mesmo herdaria apenas um terço da herança, ficando todo o restante para o irmão.

Conquanto, numa esteira evolutiva, a matéria chegou ao Supremo Tribunal Federal, e após diversos adiamentos e algumas divergências, sobreveio decisão por expressiva maioria, com a declaração de inconstitucionalidade do guerreado artigo 1.790, em especial no seu inciso III, por estabelecer concorrência do cônjuge com outros parentes, incluindo os colaterais, de forma diferenciada da sucessão assegurada ao cônjuge no artigo 1.829 do Código Civil.

Cabe repisar que o núcleo axiológico da família é o afeto e o amor, pois a família é o meio, o instrumento de plena realização da pessoa humana. Essa é a função social da família – espaço de proteção avançada de dignificação da pessoa humana. A forma da família não é medida imposta pela lei ou pelo Judiciário. A forma de família é escolha de seus participantes, de acordo com as suas próprias convicções existenciais. É o direito à liberdade de autodeterminação afetiva. Uma vez escolhido o meio de busca da felicidade e dignidade, cabe ao Judiciário tão somente chancelar toda e qualquer forma de amor.

Assim, admitir a superioridade do casamento significa proteger mais, ou prioritariamente, algumas pessoas em detrimento de outras, dessa forma violando a igualdade e a dignidade, simplesmente porque aquelas optaram por constituir uma família a partir da celebração do ato formal do casamento.

Por conseguinte, aprimorando a explanação, por todos os posicionamentos, doutrinários e jurisprudenciais, não restam dúvidas de que, com a decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil, o companheiro foi elevado à condição de herdeiro necessário, mesmo não estando expressamente prevista no rol do artigo 1.845 a própria codificação. O julgamento da nossa Corte Máxima não traz incertezas quanto a isso.

Insta ressaltar que cada caso deve ser analisado em suas particularidades, pois é indispensável a análise de certas informações que podem alterar completamente uma divisão patrimonial. Sendo assim, é necessário advertir que este artigo tem o simples objetivo de facilitar a compreensão dos leitores sobre o assunto de uma forma geral.

Sabrina Maia de Oliveira do Amaral

Escrito por:

Sabrina Maia de Oliveira do Amaral

Advogada especialista em Direito de Família e Sucessões.

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